Kate Pulley
A escrita dos escritores tímidos tem muito de semelhante com a arte de conversar aplicada aos tímidos sociais. A maior parte das vezes quer escrever, mas não consegue. Há sempre qualquer coisa que o impede, tal como a maior parte das vezes, junto das pessoas, quer falar, mas há sempre qualquer coisa que o impede. Essa qualquer coisa tem nome, é o medo inconsciente de falhar, de dizer mal, de se esmagar contra o olhar que nós julgamos sempre feroz e infinitamente mais inteligente do outro. O mesmo se aplica à escrita. O olhar do outro vive inconscientemente dentro do nosso olhar. E o outro abstracto é sempre um eu melhorado, um eu contra o qual nós nos sentimos incapazes de combater. Os tímidos vivem sob o pavor de falhar, colocam sobre as suas lindas cabecinhas as orelhas de burro da culpabilização: eu sou mau ainda antes de o ser e, por essa lógica, se o for ainda pior serei. Os tímidos são as pessoas mais prevenidas e poupadas de que há memória. Poupam os outros de si mesmos, poupam palavras, poupam gestos, estão sempre a poupar. E é triste. Porque os tímidos, ao contrário dos outros, consomem-se em pensamentos, têm uma teoria para tudo - este é também um mito que os tímidos alimentam para se sentirem um bocadinho melhor -, mas rezarão para a história como meros figurantes na fotografia, são os da mesa do canto, os que coram, os que desviam o olhar, os que não têm sentido de oportunidade na hora da palavra, os eternos não me lembro do nome. Calam-se, não escrevem, não concretizam. Mas todo o ser humano é um ser de palavras, é um ser que nasceu para dizer algo que mais ninguém poderá dizer. Por isso, de quando em vez, o tímido monta no curso do pensamento num pónei alado e abre as comportas das palavras com um facho que tudo ilumina. Conversa muito, até ao cansaço, brilham-lhe os olhos, escreve muito, até ao cansaço, brilham-lhe ainda mais os olhos, e curva-se sobre o teclado como raposa sobre cacho de uvas ou riacho fresco e um súbito sentimento de realização inunda-lhe as mãos, inunda-lhe a boca até naufragar de novo no silêncio, até se refugiar de novo no seu casaco invisível, na sua apatia de pato de borracha que a criança esquece no vórtice do banho. É uma merda ser tímida, meus queridos. Uma merda, vos digo.
Ana Salomé
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